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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 8, n. 1, (abr. 2020), p. 7 - 26
Poder e autonomia das organizações
internacionais: a OMPI na governança dos
direitos de propriedade intelectual
Power and autonomy of international organizations: the
WIPO in the governance of intellectual property rights
Poder y autonomía de las organizaciones internacionales:
la OMPI en la gobernanza de los derechos de propiedad
intelectual
Henrique Zeferino de Menezes
1
Daniela de Santana Falcão
2
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2020v8.n1.p7
Recebido em: 10 de janeiro de 2019
Aceito em: 30 de abril de 2019
R
O artigo analisa o papel da Organização Mundial da Propriedade Intelectual
(OMPI) na estruturação do regime internacional de propriedade intelectual,
destacando como suas características particulares a confeririam poder e auto-
nomia sobre sua constituency, os países-membros. Tomando com referência a
estrutura analítica sugerida por Barnett e Finnemore (1999) sobre autonomia
das organizações internacionais, são analisadas as características organizacionais
e os mecanismos de governança da OMPI – fundamentalmente o papel da sua
Secretaria executiva, a relação com o setor privado e o seu particular mecanismo
de nanciamento. A leitura desses elementos e das atividades desempenhadas
pela OMPI aponta claramente para um nível de poder e autonomia da organi-
zação perante os países que a compõem e um distanciamento entre suas ações
e seu mandato, o que signicaria um tipo de disfuncionalidade. Entretanto, a
conclusão que chegamos é que, na realidade, há uma mudança na relação de de-
pendência da OMPI e uma espécie reconguração da sua função internacional.
Palavras-chave: Organizações internacionais. Organização Mundial da Proprie-
dade Intelectual. Propriedade intelectual. Autonomia Política.
A
This paper analyzes the role of the World Intellectual Property Organization
(WIPO) in the structuring of the international intellectual property rights regime,
highlighting how its particular characteristics would confer power and autonomy
on its constituency - the member-countries. Taking into account the analytical
framework suggested by Barnett and Finnemore (1999) on the autonomy of
1. Doutor em Ciência Política pela
Unicamp. Professor do Departamento de
Relações Internacionais e do Programa
de Pós-graduação em Ciência Política
e Relações Internacionais (PPGCPRI) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
João Pessoa, Paraíba. ORCID: 0000-
0002-1385-7957.
2. Mestre pelo Programa de Pós-gradu-
ação em Políticas Públicas, Estratégias
e Desenvolvimento (PPED) do Instituto
de Economia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em
Relações Internacionais pela Universi-
dade Federal da Paraíba (UFPB). Rio de
Janeiro, Brasil. ORCID: 0000-0001-8017-
9300.
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international organizations, we analyse the WIPO organizational characteristics
and governance mechanisms - fundamentally the role of its Executive Secretariat,
the relationship with the private sector and its particular funding mechanism. The
analysis of these elements and the activities carried out by WIPO clearly show
a level of power and autonomy of the organization vis-à-vis the countries that
comprise it, and a distance between its actions and the organization mandate,
which would mean a type of dysfunctionality. However, the conclusion we have
reached is that, in reality, there is a change in the WIPO dependency relationship
and a kind of reconguration of its international function.
Keywords: International organizations. World Intellectual Property Organiza-
tion. Intellectual Property Rights. Political autonomy.
R
El artículo analiza el papel de la Organización Mundial de la Propiedad Inte-
lectual (OMPI) en la estructuración del régimen internacional de propiedad
intelectual, destacando cómo sus características particulares conferirían poder y
autonomía sobre su constituency, los países miembros. Tendo como referencia a
la estructura analítica sugerida por Barnett y Finnemore (1999) sobre la autono-
mía de las organizaciones internacionales, se analizan las características orga-
nizativas y los mecanismos de gobernanza de la OMPI, fundamentalmente el
papel de su Secretaría ejecutiva, la relación con el sector privado y su particular
mecanismo de nanciación. La lectura de estos elementos y las actividades rea-
lizadas por la OMPI apuntan claramente a un nivel de poder y autonomía de la
organización con respecto a los países que lo componen y un desprendimiento
entre sus acciones y su mandato, lo que signicaría un tipo de disfuncionalidad.
Sin embargo, la conclusión a la que llegamos es que, en realidad, hay un cambio
en la relación de dependencia de la OMPI y una especie de reconguración de
su función internacional.
Palabras clave: Organizaciones internacionales. Organización Mundial de la
Propiedad Intelectual. Propiedad intelectual. Autonomía política.
Introdução
A disciplina de Relações Internacionais tem se dedicado ao debate
sobre o papel das organizações internacionais (OIs) desde seu nascimento
– fundamentalmente, o papel que elas desempenham na coordenação das
ações estatais e na solução de conitos políticos e distributivos que resul-
tam da interação entre eles. Nesse espectro especíco, ganha relevância
a leitura dos processos políticos e as razões que levam a construção desse
tipo especíco de arranjo institucional, assim como as formas e meios
pelos quais os Estados exercem poder e inuência sobre elas. Ainda, a
disciplina questiona as razões porque algumas organizações se mantêm
e outras são reformadas ou substituídas. Após a Segunda Guerra Mun-
dial, com a proliferação de novos arranjos institucionais e burocracias
internacionais, e com a ampliação do dlogo da disciplina com a ciência
política e as abordagens teórico-metodogicas amparadas pelo institu-
cionalismo, os estudos sobre instituições e organizações internacionais
não pararam de se avolumar, aprofundar e ganhar relevância (KRATO-
CHWIL; RUGGIE, 1986; ABBOTT; SNIDAL, 1998).
Desde então, uma grande quantidade de pesquisas e textos acadê-
micos se debruçou sobre questões referentes ao papel e funcionalidade
9
Henrique Zeferino de Menezes e Daniela de Santana Falcão Poder e autonomia das organizações internacionais:
a OMPI na governança dos direitos de propriedade intelectual
de instituições, organizações e regimes internacionais. Dentro do amplo
universo de correntes teóricas do campo que abordaram a cooperação
inter-estatal e seus arranjos políticos, pode-se destacar as leituras direcio-
nadas a tratar da especicidade das organizações intergovernamentais.
Em virtude da sua maior institucionalização e da conformação de um
corpo burocrático internacional permanente e tecnicamente orientado,
pressupor-se-ia que as organizações produziriam resultantes políticos
particulares, quando comparadas a outras formas institucionais.
Ao observamos de forma mais detida os debates e problematiza-
ções sobre o papel das OIs, nos deparamos com um entendimento co-
mum, uma nomenclatura padrão, que arma as organizações internacio-
nais como atores internacionais – ou seja, sujeitos políticos e jurídicos
dotados de agency (NESS; BRECHIN, 1988; ALVAREZ, 2006). Entretanto,
uma questão menos repercutida se refere exatamente ao grau de autono-
mia política que esses atores políticos e sujeitos do direito internacional
detêm. Essa questão nos remete a uma pergunta mais objetiva: qual o
sentido de nomeá-las atores políticos? Seriam sujeitos realmente dotados de
autonomia política ou apenas instrumentos pelos quais os Estados exer-
cem suas preferências? Possuem agenda e interesses particulares e atuam
de forma a resguardá-los? As respostas a essas perguntas difeririam uma
regra, um tratado ou uma arena de um ator político.
Efetivamente, as principais correntes teóricas da disciplina e os es-
tudos e análises empíricas mais conhecidas não trazem essa problema-
tização ao estudo das OIs – lidam mais detidamente com questões so-
bre a rationale da institucionalização das relações de cooperação entre os
Estados e sobre os efeitos distributivos produzidos por ela; ou sobre a
capacidade de enforcement e grau de compliance a suas regras (ABBOTT;
SNIDAL, 2000; RAUSTIALA; SLAUGHTER, 2002). Entretanto, alguns
trabalhos se dedicaram à questão da autonomia política das OIs, especial-
mente a autonomia diante os interesses manifestados e contratados dos
Estados, tanto em âmbito teórico, como por meio da realização de pes-
quisas empíricas. Um importante exemplo é o trabalho seminal de Bar-
nett e Finnemore (1999).
Nesse artigo pretendemos contribuir com a discussão sobre o papel
das OIs na organização da economia política internacional, a partir da
alise de um caso especíco. O objetivo é, além de trazer elementos ge-
rais sobre a atuação de uma organização muito pouco pesquisada, apesar
da sua relevância global, a Organização Mundial da Propriedade Intelec-
tual (OMPI), abordar exatamente a questão da autonomia política das
organizações na política internacional. A hipótese trazida nesse artigo é
que a OMPI seria uma organização com características particulares, que
a garantiria poderes excepcionais sobre seus membros, conferindo um
nível de autonomia política real e signicativo sobre os mesmos. Essa
autonomia seria ainda responsável por levar a organização um comporta-
mento de tipo disfuncional, de acordo com a caracterização proposta por
Barnett e Finnemore (1999).
Para dar resposta à hipótese apresentada, passamos em revista o pa-
pel da OMPI na primeira parte do texto, apontando suas particularidades
e modo de funcionamento. Na segunda parte, é apresentado o arcabouço
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teórico da alise que será feita na terceira sessão do texto. Baseado no
argumento trazido por Barnett e Finnemore (1999) sobre a capacidade de
ação autônoma das OIs, tentamos demonstrar como a OMPI extrapola
os elementos apresentados pelos autores, possuindo uma capacidade de
exercício de poder autônomo sobre os Estados. As explicações para tanto
estariam reunidas no poder político típico das burocracias que a OMPI
possui e em características particulares da organização, i.e. sua estrutura
particular de governança e seu mecanismo de nanciamento. Ainda na
última sessão apresentamos as formas como essa autonomia se manifesta
concretamente.
A Organização Mundial da Propriedade Intelectual
Como mencionado na introdução, a OMPI é uma organização
que apesar da sua relevância política e econômica não tem sido objeto
de pesquisas sistemáticas que possam destacar suas funções no regime
internacional de propriedade intelectual e seu modo particular de funcio-
namento. Sua relevância política estaria relacionada diretamente ao seu
objeto de atuação, uma vez que lida com um ramo das regulamentações
econômicas de maior importância para a economia internacional, com
impactos direto sobre as trajetórias de desenvolvimento dos países, as-
sim como impacta uma ampla variedade de políticas públicas essenciais
(MASKUS, 2010). Desde nais do século XIX até o presente momento, os
direitos de PI se apresentam como uma variável fundamental de disputa
na economia internacional
3
. E dentro desse universo, a OMPI tem desem-
penhando uma função central no processo de construção, adaptação e
reformulação do regime internacional de PI desde seus primórdios.
A OMPI tem suas raízes nos Acordos de Paris (1883) e Berna (1886),
que conformaram o sistema internacional de proteção à propriedade in-
dustrial e de direitos autorais. Esses dois acordos foram a base para a cria-
ção do United Bureau for the Protection of Intellectual Property (BIRPI) no ano
de 1893, antecessor funcional e formal da OMPI, criada efetivamente no
ano 1970. A sua evolução institucional levou ao estabelecimento na atua-
lidade de uma burocracia internacional ampla, que lida com uma temáti-
ca altamente complexa (MAY, 2007).
Concretamente, a OMPI é o lócus político e institucional de uma
grande quantidade de tratados internacionais que incidem sobre diferen-
tes ‘objetos tecnogicos’ e tipos de direitos de PI. Ainda, a organização
é responsável por uma série de serviços em matéria de proteção e regu-
lação dos direitos de PI. Em linhas gerais, os acordos administrados pela
organização são de três tipos:
Tratados que estabelecem regras substantivas de proteção à PI:
Os acordos de Paris e Berna são os mais importantes, pois esta-
beleceram a base normativa fundamental para organização do regime
internacional de PI e para a criação da OMPI. Ao longo das décadas, e em
razão das transformações tecnogicas desencadeadas, o rol de matérias
protegíveis ampliou-se signicativamente, da mesma forma que os tipos
3. Apenas para ilustrar, a proteção a PI
marcou importantes disputas econômi-
cas internacionais, com destaque para
a proposta de resolução direcionada a
Assembleia Geral das Nações Unidas
em 1961, para reformar o sistema
internacional de patentes. Posterior-
mente, com a proposta inserida à ‘UN
Declaration on the Establishment of a
New International Economic Order’ de
1974, que previa negociações na UNC-
TAD do Code of Conduct for the Transfer
of Technology e do Code of Conduct
for the Control of Restrictive Business
Practices, além da proposta de reforma
de acordos no âmbito da própria OMPI
(RICHARDS, 2004). Contemporane-
amente, as controversas acerca das
regulações internacionais em PI se
colocaram de forma mais contundente
nas negociações de acordos preferen-
ciais de comércio, como o Trans-pacific
Partnership Agreement (TPP).
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Henrique Zeferino de Menezes e Daniela de Santana Falcão Poder e autonomia das organizações internacionais:
a OMPI na governança dos direitos de propriedade intelectual
de proteção à PI se multiplicaram, levando a multiplicação de acordos e
tratados internacionais negociados na organização. Atualmente, são 15 os
acordos dessa natureza administrados pela organização
4
.
Tratados regulam atividade de registro de direitos de PI;
Esses são tratados que facilitam e estimulam a obtenção de um di-
reito de PI globalmente. O direito de PI é um direito nacional, ou seja, um
direito que demanda submissão de pedido, análise e registros individuais
em cada país. Assim, uma proteção extensiva a vários países demanda a
submissão do mesmo pedido em todos os países que se pretende possuir e
exercer o direito. A OMPI construiu uma ampla rede de tratados interna-
cionais que conformou uma infra-estrutura para a submissão simultânea
de pedidos em inúmeros países signatários. Os acordos estabelecem meios
para ampliação da capacidade de exercício de direitos de PI globalmente
5
.
Tratados de classicação e reconhecimento internacional de direitos.
São acordos que regulam aspectos essencialmente técnicos da pro-
teção à PI. Criam sistemas de classicação que organizam informações
sobre relativas a invenções, marcas registradas e desenhos industriais em
estruturas gerenciais indexadas que facilitam o reconhecimento por inte-
ressados e a fácil recuperação de dados
6
.
Considerando suas atribuições, a OMPI se estabeleceu ao longo do
século XX como a principal organização a lidar com as matérias relacio-
nadas aos direitos de PI, apesar de não ser a única. Outras agências inter-
nacionais tinham e tem em seu escopo de atuação temáticas relaciona-
das (ou sensíveis) à proteção privada sobre o conhecimento
7
. Entretanto,
desde a criação do BIRPI até nais do século XX, a OMPI centralizou os
processos negociadores para conformação das regras que regulam inter-
nacionalmente os direitos PI e construiu os instrumentos globais volta-
dos à concessão e reconhecimento desses direitos.
Por décadas, a OMPI foi considerada uma organização essencial-
mente técnica e pouco ‘politizada. Uma das razões, além do próprio ob-
jeto de sua atuação, estaria no fato de não haver a obrigatoriedade de
adesão aos seus acordos, além da pouca ‘interferência’ desses acordos na
capacidade nacional de legislar sobre o tema. Entretanto, uma transfor-
mação importante levou a uma revolução no regime internacional de PI,
jogando a proteção privada sobre o conhecimento para o cento da agenda
econômica internacional – a aprovação do Trade-related Aspects of Intellec-
tual Property (TRIPS), com a conclusão da Rodada Uruguai do General
Agreement on Taris and Trade (GATT).
O TRIPS alterou signicativamente a forma e a estrutura da go-
vernança internacional dos direitos de PI, assim como alterou o papel
internacional da OMPI. Pela primeira, um tratado internacional de PI es-
tabeleceu um padrão mínimo obrigatório de proteção extensivo a todos
os setores tecnogicos e a todos os membros da Organização Mundial
do Comércio (OMC). Além disso, estabeleceu de forma objetiva e clara os
tipos de proteção, as formas de concessão, os prazos mínimos de vigência
4. Beijing Treaty on Audiovisual Perfor-
mances; Berne Convention; Brussels
Convention; Madrid Agreement (Indica-
tions of Source); Marrakesh VIP Treaty;
Nairobi Treaty; Paris Convention; Patent
Law Treaty; Phonograms Convention;
Rome Convention; Singapore Treaty on
the Law of Trademarks; Trademark Law
Treaty; Washington Treaty; WIPO Co-
pyright Treaty (WCT); WIPO Performan-
ces and Phonograms Treaty (WPPT).
5. Patent Cooperation Treaty (PCT) – The
International Patent System; Protocolo
de Budapeste – The International
Microorganism Deposit System;
Protocolo do Madri – The International
Trademark System; Protocolo de Haia
– The International Design System;
Protocolo de Lisboa – The International
System of Appellations of Origins.
6. Locarno Agreement; Nice Agree-
ment; Strasbourg Agreement; Vienna
Agreement.
7. Variadas agências especializadas das
Nações Unidas dedicaram parte de suas
funções a matérias relacionadas à PI
e à inovação, como a CSTD da ECOSC,
ITU, UNIDO, UNCTAD e UNEP. A FAO e
a CDB lidam com questões referentes
à proteção sobre biodiversidade e seus
impactos sobre desenvolvimento agrário
e segurança alimentar. A UNESCO, OMS
e outros órgãos vinculados a direitos
humanos tratam da relação entre a pro-
teção à PI e acesso a determinados direi-
tos fundamentais (MUSUNGU, 2005).
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 8, n. 1, (abr. 2020), p. 7 - 26
e os critérios a serem utilizados pelos países na alise e concessão das
diversas modalidades de PI. Assim, o TRIPS homogeneizou institucional-
mente os sistemas nacionais de proteção e limitou a liberdade dos países
de decidir sobre formas e tempo de proteção e sobre áreas passíveis de
concessão de direitos de PI. Ainda, o TRIPS estabeleceu regras especícas
de enforcement e atrelou as regras negociadas ao mecanismo de solução de
controversas da OMC (SELL, 2003). A conclusão do TRIPS estabelecera
um acordo efetivamente global de PI, com regras obrigatórias, vinculan-
tes, e atrelado a uma organização dotada de mecanismos de obserncia.
A consequência natural dessa novidade institucional seria a redu-
ção do papel da OMPI na governança internacional dos direitos de PI,
sua continuada deslegitimação e atroa funcional. Segundo May (2007),
a aprovação do TRIPS e a criação da OMC levaram analistas apostarem
na ‘falência’ e ‘morte’ da OMPI. Entretanto, ao contrio do esperado, o
que aconteceu foi o aumento expressivo das funções políticas e técnicas
da OMPI e da sua própria relencia. A aprovação do TRIPS fora respon-
sável por isso, uma vez que alterou os rumos da agenda internacional de
PI e criou novas janelas de ação para a OMPI.
A conformação de um sistema de proteção efetivamente global,
que prevê normas incisivas sobre os sistemas nacionais dos países, elevou
o tema à dianteira das discussões internacionais e deu maior relencia
às disputas políticas sobre a matéria. Atrelado a esse processo de maior
politização’ dos direitos de PI, o Conselho do TRIPS, lócus institucional
para o tema da PI na OMC, viveu um período de paralisia em razão da
diculdade de alcançar consenso decisório
8
. Com isso, a OMPI acabaria
voltando a ter papel técnico signicativo e a ser palco de negociações de
novos compromissos internacionais, reencontrando assim um espaço de
ação política, por meio da proposição ou recepção de novas agendas ne-
gociadoras. Assim, a OMPI recebeu inúmeras demandas para a negocia-
ção de acordos de tipo TRIPS-plus
9
. Alguns desses acordos se voltaram à
negociação de formas de proteção para setores tecnológicos particulares,
que apresentaram baixo padrão normativo no TRIPS, como a proteção
ao conhecimento vinculado à Internet ou radiodifusão, ou para deman-
das mais amplas e gerais para o fortalecimento dos direitos de PI.
Por outro lado, a OMPI também se estabeleceu como fórum para
que países em desenvolvimento buscassem a produção de normas que
resguardassem as exibilidades existentes no TRIPS e estabelecer formas
de proteção de matérias de seu interesse. A Agenda do Desenvolvimento, lan-
çada em 2004, voltou-se justamente para a garantia de exibilidades para
implementação de políticas de desenvolvimento vinculadas à produção e
acesso a conhecimento. No mesmo sentido, o Intergovernmental Commit-
tee on Intellectual Property and Genetic Resources, Traditional Knowledge and
Folklore (IGC) tem sido palco para demandas voltadas a adequação das re-
gras de PI às diretrizes de acesso e compartilhamento de benefícios do uso
de material biogenético e conhecimento tradicional, conforme estabele-
cido pela Convenção da Diversidade Biogica (CDB) (MENEZES, 2013).
Nesse ambiente de maior potencialidade internacional dos direitos
de PI e de emergência de controversas importantes na área, a OMPI se de-
dicou à construção de uma rede de cooperação com várias organizações
8. O processo de negociação do TRIPS,
assim como o período subsequente, foi
marcado por fortes clivagens políticas
e forte resistência por parte de impor-
tantes economias em desenvolvimento,
especialmente Brasil e Índia.
9. Acordos TRIPS-plus são aqueles que
avançam normativamente no sentido do
aumento da proteção e da privatização
do conhecimento, além do padrão
mínimo estabelecido pelo TRIPS, limi-
tando as liberdades e flexibilidades dos
Estados na construção de seus sistemas
nacionais de proteção.
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Henrique Zeferino de Menezes e Daniela de Santana Falcão Poder e autonomia das organizações internacionais:
a OMPI na governança dos direitos de propriedade intelectual
internacionais, especialmente a própria OMC
10
. Nesse aspecto, adquiriu
um papel importante e politicamente controverso com a oferta de pro-
gramas de assistência técnica a países com menor capacidade técnica para
adequação de seus sistemas nacionais de proteção à PI aos padrões esta-
belecidos pelo TRIPS. As cláusulas mandatórias do acordo demandavam
ajustes profundos nas regras e instituições nacionais, criando novas obri-
gações para a maioria dos países. Por sua vez, a adequação das normas na-
cionais às características e particulares locais exige uma sensibilidade ge-
rencial que a OMPI não necessariamente trazia em suas recomendações.
Outro eixo fundamental de ação da OMPI é a administração de
tratados que facilitam a concessão de direitos de PI globalmente. Com
o aumento signicativo da abrangência e da profundidade das regras de
proteção a PI (aumento de países com sistemas nacionais de proteção e a
indiscriminação de setores tecnológicos passíveis de proteção), os pedidos
de patentes e outras formas de proteção aumentaram vertiginosamen-
te. Assim, tratados desse tipo, especialmente o Patent Cooperation Treaty
(PCT), passaram a ser substancialmente mais demandados. O gráco
abaixo mostra a evolução global desses pedidos entre 1991 e 2016. É pos-
vel perceber uma inclinação forte a partir de 1995 e outras duas em 2000
e 2005, quando terminavam prazos transitórios de adequação normativa
aos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos.
Gráfico 1: Pedidos de patentes registrados no mundo, por meio de pedidos diretos ou
pelo PCT
Fonte: Elaborado pelos autores com dados extraídos da plataforma online interativa da
OMPI Intellectual Property Statistics. Disponível em https://www.wipo.int/ipstats/en/.
Resumidamente, após a conclusão do TRIPS, as atividades da OMPI
se concentraram em três dimensões: a) normatização internacional dos di-
reitos de PI: fortalecimento do seu papel normativo com a busca pela aquies-
cência dos membros aos acordos existentes, reforma e atualização de acor-
dos e a negociação de novos tratados internacionais; b) suporte e assistência
técnica: atividade que passou a ter grande relevância, porque acabara de-
nindo a forma como os países internalizaram as regras internacionais em
suas legislações nacionais; c) concessão de direitos: administração de acor-
dos que facilitam a concessão e o reconhecimento internacional de direitos.
10. Nos anos de 1994 e 1995, OMPI
e OMC assinaram dois acordos de
cooperação, nos quais previa-se a oferta
de assistência técnica pela OMPI, para
que os países aderissem às cláusulas
do TRIPS e se adaptassem às novas
exigências estabelecidas pelo Tratado.
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 8, n. 1, (abr. 2020), p. 7 - 26
A autonomia política das organizações internacionais
A maioria das alises teóricas sobre o papel das OIs busca entender
as razões que levam os Estados a organizar suas ações cooperativas em
torno de mecanismos burocrático-administrativos especícos. Ou seja,
compreender as razões que levariam os Estados a criarem organizações
para regular a vida política internacional e, por consequência, compreen-
der a razão de países aderirem a regras e normas que limitam a discricio-
nariedade de suas ações e impõem custos sobre determinadas decisões
autônomas. Parte dessa produção acadêmica se amparou em uma base
epistemológica fundada em pressuposições econômicas de racionalidade
instrumental e eciência das decisões: perspectiva que informa tanto os
institucionalistas-neoliberais como as análises neorealistas.
As instituões e organizações internacionais seriam, elas pró-
prias, uma resposta aos interesses Estados. Atuariam como instrumento
a processar os interesses dos Estados, por meio da facilitação de intera-
ções estratégicas. Nesse sentido, são entendidas como ferramentas de-
rivadas do comportamento maximizador dos Estados, responsáveis por
produzir soluções para problemas de coordenação política e problemas
distributivos. Especicamente, lidam com e respondem por problemas
relacionados à incompletude de informações, custos elevados de transa-
ções e outros dilemas típicos da ação coletiva. Ainda, as OIs proveriam
as condições para a satisfação dos interesses dos Estados, ao termo que
criam condições para minorar os riscos e dilemas inerentes à ação coo-
perativa, promovem previsibilidade e estímulos às ações adequadas por
parte dos Estados e criam mecanismos de punição a ações desviantes.
Em termos gerais, as OIs seriam parte elementar, operacional e prática,
de uma ordem social estabelecida pelos Estados para a realização de
seus interesses particulares, por meio da criação de normas gerais de
comportamento e bens coletivos.
Portanto, a criação e a manutenção de OIs reetiriam os resultados
ecientes e adequados por elas produzidos. Trata-se de uma formulação
analítica que dene a existência das OIs pelos interesses prévios deni-
dos dos Estados – aumento do bem estar e maximização de preferências.
Com isso, a própria existência delas expressaria a eciência de seu fun-
cionamento. Ou seja, elas existem e se mantém em funcionamento na
medida e somente enquanto cumprem a sua função – função que deriva
diretamente dos interesses denidos pelos Estados.
Entretanto, é interessante ressaltar que não só as abordagens típicas
do institucionalismo tratam as OIs como resultado das interações estra-
tégicas dos Estados. O neo-realismo também parte de uma perspectiva
racionalista para analisar a criação e o funcionamento das OIs, tratado-as,
nesse caso, como variáveis de menor relevância para a explicação dos de-
terminantes do comportamento dos Estados e do próprio funcionamento
do sistema internacional. Na realidade, as OIs seriam um epifenômeno – a
materialização da distribuição de poder entre as potências. De toda sorte,
os componentes explicativos do comportamento dos Estados, incluindo
a predisposição a cooperação ou conito, estariam em uma unidade de
alise distinta das próprias organizações. Na realidade, a estrutura do
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Henrique Zeferino de Menezes e Daniela de Santana Falcão Poder e autonomia das organizações internacionais:
a OMPI na governança dos direitos de propriedade intelectual
sistema internacional e as congurações da distribuição de poder nele
que explicariam a emergência e decadência das OIs (WALTZ, 2000).
Por m, outra perspectiva teórica que também valoriza o papel in-
ternacional das organizações, mas que produz explicações que partem de
uma matriz teórica distinta, a teoria crítica, reconhece, por sua vez, a pre-
ponderância da potência, do hegemon, na denição dos padrões normativos
internacionais, na conformação das regras que estabelecem os critérios de
comportamento que regulam a economia política internacional. As nor-
mas e as OIs representariam a materialização de padrões de comporta-
mento que espelham aqueles do hegemon e que respondem a interesses
particulares, apesar de manifestadamente pretenderem a universalidade.
Ou seja, as organizações representam, em si, a formalização e a materia-
lização de um processo de conformação de uma ordem hegemônica – a
internacionalização de uma forma de organização social própria, que in-
ternacionaliza as relações capital-Estado, as formas de organização da pro-
dução e de apropriação da renda mundial – que se constituira previamen-
te na potência hegemônica. Nesse sentido, as OIs se manifestam como
o amálgama de uma forma de organização da produção, permitindo a
expansão e reprodução das formas produtivas do centro, a apropriação
das riquezas, além de instrumento de captação e conciliação de interesses
contraditórios. No mesmo sentido das perspectivas anteriores, as OIs cor-
respondem à formas de administração das relações entre os Estados que
espelham elementos explicativos externos à elas (COX, 1996; GILL, 1995).
De certa forma, é possível dizer que as três correntes analíticas não
entendem as OIs realmente como atores políticos, mas como instrumen-
tos políticos que respondem aos interesses, manifestos ou não, daqueles
que operam de forma concreta a política internacional. Sejam as OIs ins-
trumento de coordenação política e facilitação da cooperação internacio-
nal, como armam as abordagens institucionalistas, ou instrumento de
exercício de poder político, coercitivo ou econômico, como apregoam,
por caminhos diferentes, neorealistas e neo-gramscianos, elas seriam en-
tendidas como ‘meios’ e não como sujeitos dotados de agency, de efetiva
capacidade decisória autônoma.
Diferentemente das tradicionais abordagens mencionadas, a pers-
pectiva de Barnett e Finnemore (1999) extrapola essa forma de pensar as
OIs. Apesar de armarem as OIs como atores internacionais, as abordagens
tradicionais as tratam como instrumento ou variável interveniente para
compreensão do funcionamento do sistema internacional, da cooperação
internacional ou dos interesses das grandes potências. Para neo-liberais,
neorealistas e mesmo para a teoria crítica, as OIs são representações ou
materializações de estruturas anteriores, ou representações dos interes-
ses estatais, podendo ser tratadas como forças intervenientes, aparatos
constrangedores das ações estatais, mas não como ator político autôno-
mo. Mesmo que essas correntes tenham compreensões distintas sobre
quais interesses as OIs representam e de que maneira (e qual) estrutura
sistêmica incide sobre os processos políticos de criação e recriação de re-
gras e instituições que alimentam o funcionamento das OIs, essas não se
objeticam’ a ponto de se emancipar desses elementos conformadores da
vivência internacional.
16
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 8, n. 1, (abr. 2020), p. 7 - 26
Abbott e Snidal (1998) defendem a necessidade de um olhar mais
atento, aprofundado e especíco para as OIs – suas características parti-
culares as garantiriam funções típicas e produziriam efeitos especícos
na coordenação política entre os Estados. Para os autores, a centralização
e independência dariam a essa forma particular de instituição uma ca-
pacidade interveniente distinta de outros arranjos cooperativos, além de
produzir efeitos especícos. A centralização de atividades coletivas em
torno de uma estrutura organizacional estável, com o suporte de um apa-
rato administrativo-burocrático, facilitaria a interação e negociação entre
os Estados, aumentando a eciência e ampliando a reputação da mesma.
Esses efeitos teriam potencial de criar um ciclo virtuoso que ampliaria
ainda mais a relencia política das OIs. Por sua vez, em virtude inclusive
da centralização administrativa, essas adquiririam um grau relativo de
independência: cria-se um grau de pró-atividade no fomento à coopera-
ção entre os Estados. As OIs passariam a se conformar como instâncias
autorizadas” a tomar determinadas decisões de forma autônoma, mas
condizente com seu mandato. Entretanto, a determinação da ação ao
estabelecido no seu mandato traria de volta à discussão para as variáveis
denidoras do próprio mandato (ou seja, novamente os principais atores
políticos e as estruturas internacionais seriam as variáveis de análise a
determinar o mandato e o real papel das OIs).
A ideia de independência defendida por Abbott e Snidal (1998) tor-
na-se ainda mais frágil, quando concluem que as OIs adquirem um grau
de neutralidade como resultado da capacidade de centralização e indepen-
dência. Nas palavras dos autores, “as organizações internacionais pro-
vêem fóruns neutros, despolitizados e especializados mais efetivos que
praticamente todos outros arranjos descentralizados e informais” (AB-
BOTT, SNIDAL, 1998, p. 10). Ao ligarem a independência ao exercício do
mandato e a neutralidade ao exercício técnico do estabelecido por ele, os
autores revertem a lógica do conceito de autonomia, que seria justamente
a capacidade de tomar decisões sobre as próprias ações.
Barnett e Finnemore (1999) comungam da necessidade de pensar
de forma mais detida as características particulares das organizações in-
tergovernamentais e o papel que esse tipo particular de burocracia de-
sempenha. Entretanto, trazem uma alise distinta da supramencionada.
Mesmo reconhecendo que elas emergem como resposta aos interesses
dos Estados, os autores entendem as OIs como estruturas políticas ca-
pazes de se tornarem efetivos atores políticos – ou seja, atores capazes
de atuar com autonomia razoável perante sua constituency e conformar
uma agenda. Essa capacidade residira justamente nas suas características
intrínsecas, de uma burocracia internacional. Em linhas gerais, o pro-
cesso de burocratização, racionalização e efetividade das organizações
produziria como resultado um razvel descolamento perante os Esta-
dos-membros, em que elas deixariam de ser mero reexo das preferências
estatais, adquirindo poder e autonomia. Uma possível conseqüência da
autonomia das organizações, explicam Barnett e Finnemore (1999), seria
o “desvirtuamento” das suas ações em relação ao que fora denido na
sua criação, no seu mandato, tornando-as, eventualmente, disfuncionais,
mas não necessariamente inecientes.
17
Henrique Zeferino de Menezes e Daniela de Santana Falcão Poder e autonomia das organizações internacionais:
a OMPI na governança dos direitos de propriedade intelectual
O empoderamento das organizações estaria relacionado, primei-
ramente, à centralização administrativa. Característica apontada por
outros autores, mas tratada como uma variável particular. A capacida-
de de centralização de um amplo conjunto de atividades relacionadas à
cooperação em torno de uma burocracia especíca produziria um tipo
de autoridade racional-legal típica das burocracias. O controle sobre
informações técnicas, de outra maneira dispersas, a capacidade de gestão
administrativa sobre temas de alta complexidade, a manipulação de recursos
materiais e imateriais relacionados a temáticas de interesse dos Estados
provêem um nível de poder considerável para as OIs. Esse poder, típico
das burocracias, cria um nível de ‘autonomia’ – capacidade de exercer
poder autonomamente – em sentido não intencional e não esperados pe-
los Estados quando da criação das OIs.
Ou seja, as OIs ganham poder e, por consequência, autonomia na
medida em que fortalecem sua autoridade racional-legal, que está relacio-
nada ao fato delas utilizarem de conhecimento reconhecido como socialmente
relevante para as partes e criarem regras que determinam como objetivos
serão alcançados. O fato dessas organizações se reportarem como agentes
dotados de racionalidade especíca e exercerem capacidade de manejo
das informações as fazem poderosas e, ainda, transfere aos Estados o in-
teresse de se submeter a esse tipo de autoridade.
A centralização de atividades cooperativas dá as OIs controle sobre
importante expertise técnica e um conjunto amplo de informações. Elas
controlam conhecimento que não está disponível para o público geral
(em termos técnicos e no volume que elas controlam). Assim, a coorde-
nação centralizada das ações estatais – que é função natural e própria
das organizações – seria o próprio elemento garantidor de poder das OIs
sobre Estados, os quais elas deveriam responder.
O poder das OIs e das burocracias em geral é que elas se apresentam como
tecnocracias impessoais e neutras – a apresentação e aceitação dessas armações
é crítica para sua legitimidade e autoridade (...).
A legitimidade da autoridade racional-legal sugere que elas podem ter uma auto-
ridade independente das políticas e interesses dos estados que as criam, uma pos-
sibilidade obscurecida pelo tratamento técnico e político dado às OIs tanto pelos
realistas quanto pelos neoliberais. Tampouco realistas e neoliberais consideraram
como o controle sobre a informação dá às OIs uma base para ter autonomia
11
.
(BARNETT, FINNEMORE, 1999, p. 708-709, tradução nossa).
Assim, o próprio exercício da capacidade técnico-burocrática das
OIs as confere importante poder normativo. A capacidade de classicação
e denição de signicados para termos e conteúdos que denem priorida-
des e políticas se amparam justamente nessa capacidade. Por exemplo,
a denição do que são países desenvolvidos e países menos desenvolvidos e
a própria concepção de desenvolvimento ou segurança tem impactos so-
bre quais são as políticas e estratégias de desenvolvimento consideradas
adequadas e, também, nanciáveis e incentivadas pelas OIs. Dessas duas
questões emergem um terceiro elemento de poder das OIs – a capacidade
de seleção de quais políticas e normas serão difundidas como modelos ou
entendidas best practices.
Na medida em que as OIs passam a adquirir uma capacidade de
produção de normas e de ação política desconectada daquilo previamente
11. The power of IOs, and bureaucra-
cies generally are, that they present
themselves as impersonal technocratic
and neutral – (...) the presentation and
acceptance of these claims is critical to
their legitimacy and authority (...).
The legitimacy of rational-legal
authority suggests that they may have
an authority independent of the policies
and interests of states that create them,
a possibility obscured by the technical
and political treatment of IOs by both re-
alists and neoliberals. Nor have realists
and neoliberals considered how control
over information hands IOs a basis of
autonomy (BARNETT, FINNEMORE,
1999, p. 708-709).
18
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estabelecidos pelos Estados quando da sua formação, elas podem tomar
medidas ‘disfuncionais’. Ou seja, adotar medidas que fogem da sua função
original. Em determinados aspectos, a disfuncionalidade pode ser entendi-
da como uma re-funcionalidade, i.e. OIs adquirindo outros comportamen-
tos, distintos daqueles estabelecidos quando sua fundação, em resposta a
novos contextos ou constituencies, novas disposições de interesses entre a
organização e seus membros, sem que haja uma reforma do seu mandato
formal. Nesse caso, a disfuncionalidade seria algo mais próximo de um
tipo de adaptação e não necessariamente uma patologia. Por outro lado,
o empoderamento e o desvirtuamento funcional podem levar a uma pa-
tologia crônica da organização, ou ainda, representar interesses de deter-
minados grupos ou da própria burocracia, na necessariamente declarados.
Na próxima seção buscaremos aplicar a estrutura de alise ora
apresentada para analisar o funcionamento da OMPI, destacando exata-
mente os elementos que dão a essa organização considerável poder e uma
capacidade de ação autônoma diante dos países que a compõem.
Autonomia e disfuncionalidade da OMPI?
Como mencionado, a OMPI cumpre papel fundamental na organi-
zação do regime internacional de proteção à PI, sendo responsável por um
conjunto de atividades que giram em torno do reconhecimento e concessão
desses direitos. O fortalecimento institucional da organização no período
posterior à adoção do TRIPS produziu uma multiplicação de suas áreas de
atuação, levando ao aumento do seu poder e sua autonomia funcional.
Como uma consequência não natural ou imediata, seu empoderamento
teria levado também um grau de disfuncionalidade de suas ações, i.e. um
distanciamento entre suas ações concretas e seu mandato, que fundamen-
ta os princípios e as bases organizacionais de atuação da organização.
Nesse tópico mostraremos os fatores que explicariam o poder e au-
tonomia da OMPI, destacando, de um lado, os elementos típicos de sua
autoridade racional-legal, que a conferiria um grau signicativo de po-
der e autonomia diante seus membros, conforme apontado por Barnett e
Finnemore (1999). De outro lado, são destacados elementos particulares
da estrutura, organização e funcionamento da OMPI, que ampliariam a
capacidade da organização de determinar autonomamente sua agenda
política e normativa. Na sequência, trataremos dos efeitos concretos des-
se empoderamento, que reete no enviesamento da percepção organiza-
cional sobre o papel da PI no desenvolvimento, levando a um distancia-
mento entre suas práticas e o mandato da organização.
De onde provém a autonomia da OMPI? Da autoridade racional-legal ao
controle orçamentário
Desde o século XIX até os dias atuais, a OMPI se consolidou como
uma burocracia forte, ao administrar uma área do direito e da economia
política altamente complexa e demandante de um nível de expertise ele-
vado para o pleno entendimento das consequências econômicas das de-
cisões normativas. Contemporaneamente, as mudanças tecnogicas que
19
Henrique Zeferino de Menezes e Daniela de Santana Falcão Poder e autonomia das organizações internacionais:
a OMPI na governança dos direitos de propriedade intelectual
levaram a novas descobertas cientícas e a constituição de novas áreas
de conhecimento e produção
12
, impulsionaram o aprofundamento da re-
lação entre empresas, institutos de pesquisa e investidores, assim como
levaram ao aumento da procura por mecanismos de apropriação privada
sobre o conhecimento. Por sua vez, houve também uma multiplicação
das formas de proteção ao conhecimento para além dos mecanismos
tradicionais (patentes, marcas e direitos autorais)
13
. Ao mesmo tempo, a
OMPI foi espaço institucional para negociação de acordos suplementares
ao TRIPS em áreas de grande complexidade e marcadas por debates polí-
ticos e controversas profundas. As chamadas “Agenda Digital” e a “Agen-
da de Patentes” são exemplos marcantes do papel normativo da OMPI em
setores de alta intensidade tecnológica e complexidade normativa
14
.
Como resultado, a OMPI se fortaleceu como uma burocracia com
poder razvel em virtude de sua autoridade de lidar com matéria com-
plexa como são os direitos de PI. O controle sobre um amplo conjunto de
informações, assim como a capacidade de administrar e controlar uma
agenda de negociações com grande potencial econômico, confeririam a
organização um poder típico das burocracias – poder proveniente da sua
legitimidade racional-legal. Nesse sentido, além da própria autoridade
burocrática constituída por mais de um século, a OMPI exerce autorida-
de por lidar com uma matéria que exige uma ampla expertise técnica.
Somente o controle sobre o universo de informações referente às diversas
modalidades, tipos e formas de proteção a PI já conferiria à OMPI um
poder considerável sobre os países, especialmente os de menor renda re-
lativa. Entretanto, seu exercício de poder extrapola essa dimensão.
Como aparato burocrático responsável pela negociação de acordos
multilaterais de PI, a organização também controla a denição de quem
são os atores relevantes nas negociações e nos processos normativos. A
denição de quem se constitui como stakeholder é fundamental nesse
processo. Dois comitês de assessoramento, criados no nal da década de
1990 – o Policy Advisory Commission
15
(PAC) e o Industry Advisory Commis-
sion (IAC) – são responsáveis pela proposição de temas e regulações a
serem negociadas sob a coordenação da Secretaria-executiva da OMPI.
A forma como a organização é “governada” e como suas agen-
das são construídas, assim como a denição dos atores que incidem for-
malmente sobre as negociações, são elementos fundamentais do processo
negociador. Nesse sentido, a capacidade da OMPI de estabelecer parâme-
tros especícos para guiar esses processos, produz resultados próprios,
que denem os níveis de transparência, accountability e o potencial da
participação dos Estados-membro e da sociedade civil na denição das
normas que regulam os direitos de PI.
Além desses elementos típicos de uma burocracia internacional
que garantem formas especícas de poder à organização, a OMPI possui
um sistema de governança particular quando comparada com outras OIs.
Alguns fatores próprios da sua estrutura de confeririam a ela um espaço
de ação ainda mais autônomo em relação à sua constituency. Nesse senti-
do, dois elementos especícos se destacam: o papel da sua instância ad-
ministrativa técnica, a Secretaria-executiva, e a forma de nanciamento
da organização.
12. As descobertas e avanços na
biotecnologia e life sciences, junto das
pesquisas sobre genoma, além das no-
vas tecnologias da eletrônica, bioenge-
nharia, nanotecnologia e a economia da
internet, são revoluções significativas
do século XX que, além de permitir a
criação de novos bens e produtos, levou
à definição de campos da produção com
potencial inovador ainda incalculável
(MUSUNGU, 2005).
13. O TRIPS estabeleceu a proteção
a indicações geográficas, desenhos
industriais e topografia de circuitos
integrados, além de garantir algum tipo
de proteção sobre novas variedades
vegetais. As negociações dos chamados
acordos TRIPS-plus levaram à criação de
novas formas, ainda mais complexas, de
proteção à PI não previstas nos princi-
pais acordos multilaterais. A proteção a
dados de prova, proteção a seres vivos,
proteção a métodos de negócios e etc.
são novidades normativas comum em
acordos TRIPS-plus.
14. A Agenda Digital englobou a nego-
ciação de dois tratados internacionais, o
WIPO Copyright Treaty (WCT) e o WIPO
Performaces and Phonograms Treaty
(WPPT). O Beiing Treaty on Audiovisual
Performances, aprovado em 2012,
mesmo não inserido dentro da chamada
Digital Agenda, regulamentou a PI de
artistas em performances audiovisuais.
Já a Agenda de Patentes tratou de
demandas relacionadas à do Patent
Cooperation Treaty (PCT), a ratificação
do Patent Law Treaty (PLT) e negociação
do Substantive Patent Law Treaty (SPLT).
Ver o documento WIPO A/36/14.
15. WIPO Policy Advisory Commission
Endorses Use of Intellectual Property as
a Tool for Development. Disponível em:
<http://www.wipo.int/pressroom/en/pr-
docs/2003/wipo_upd_2003_208.html>.
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 8, n. 1, (abr. 2020), p. 7 - 26
Como muito bem analisado por Carolyn Deere, a OMPI possui
uma particularidade administrativa: sua Secretaria-executiva possui uma
capacidade decisória muito forte em relação aos demais fóruns e instân-
cias da própria organização, especialmente a Assembleia Geral, instância
em que os Estados são os atores com poder decisório (Deere, 2014). O en-
capsulamento da Secretaria-executiva torna as decisões menos transpa-
rentes e acountables perante a sua constituency. Ainda mais relevante para
compreendermos a realidade da relação entre OMPI e Estados-membros,
é seu mecanismo de nanciamento. A OMPI funciona quase exclusiva-
mente com nanciamento privado, resultado de pagamentos feito por
empresas pelos serviços prestados pela organização. Assim, trata-se de
uma OI que não depende da contribuição dos países-membro para garan-
tir seu funcionamento.
O gco 1 mostra a distribuição dos recursos orçamentários da
organização de acordo com a fonte.
Gráfico 2: Fontes de arrecadação da OMPI
Fonte: Elaborado pelos autores com dados extraídos da ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA
PROPPRIEDADE INTELECTUAL (2015).
O PCT responde a mais de 70% dos recursos arrecadados pela or-
ganização. Quando computados os demais instrumentos administrativos
e serviços prestados pela organização que também demandam pagamen-
tos por parte dos usuários (como a utilização dos protocolos de Madri e
Haia, a venda de serviços de estatísticas e publicações, assim como do
serviço de arbitragem), esse montante chega a praticamente 95% do to-
tal dos recursos orçamentários da OMPI. Assim, os Estados contribuem
com aproximadamente 5% do total. Uma particularidade institucional da
OMPI prevê a desvinculação decisória entre a criação de normas e polí-
ticas, por parte dos órgãos deliberativos, e a destinação de recursos orça-
21
Henrique Zeferino de Menezes e Daniela de Santana Falcão Poder e autonomia das organizações internacionais:
a OMPI na governança dos direitos de propriedade intelectual
mentários para a implementação do que fora acordado. Essa separação
estabelece, na prática, um duplo ltro decisório sobre quais as iniciativas
efetivamente serão encampadas pela organização.
Em síntese, a OMPI se caracteriza como uma organização dota-
da de poder e autoridade típica das burocracias. Especicamente, uma
burocracia que lida com uma matéria de alta complexidade e de difícil
controle por parte de governos, especialmente aqueles com limitações
orçamentárias e técnicas. Ainda, a OMPI se estrutura sob um corpo buro-
crático-administrativo peculiar, o que lhe garante certa autonomia diante
de seus Estados-membro: seu mecanismo de governança fortemente li-
gado à Secretaria executiva e seu peculiar mecanismo de nanciamento.
Dadas essas questões, torna-se relevante compreender os efeitos produ-
zidos pelo empoderamento da organização e sua autonomia diante de
sua constituency. Ou seja, reetir sobre a capacidade de ação autônoma da
organização e a eventualidade dela se reverter em ações e práticas que se
distanciam do estabelecido no mandato da organização.
Autonomia, disfunção ou nova função para a OMPI?
Quais os efeitos produzidos pelo poder e autonomia política da
OMPI? Nos termos trazidos por Barnett e Finnemore (1999), essa auto-
nomia funcional da OMPI, manifestada na sua capacidade técnica e de
condução administrativa e burocrática, pela sua estrutura de gover-
nança especíca que emprega alto poder na Secretaria-Executiva e
a desvinculação entre o orçamento da organização e a contribuição
dos Estados, produziria alguma especicidade ou disfuncionalidade na
atuação da OMPI? Para responder a essas questões é necessário inicial-
mente entender o que seria a função precípua da organização: nos termos
colocados por Barnett e Finnemore (1999), isso signica entender aquilo
que é esperado da organização. Apenas então é possível analisar eventual
disfuncionalidade da organização.
Em 1974, ONU e OMPI celebraram um acordo de cooperação em
que a primeira reconhecia a OMPI como uma de suas agências especia-
lizadas (OMPI, 1974). Esse acordo estabeleceu um novo “mandato” para
a OMPI, na medida em que atrelou às funções e ações da organização
às bases constitutivas e normativas do Sistema ONU, submetendo suas
atividades aos princípios de desenvolvimento da organização
16
. O artigo 1
do acordo estabelecera que a OMPI, como agência especializada da ONU,
deveria privilegiar em suas ações “a promoção da atividade intelectual
criativa e a facilitação da transferência de tecnologias relacionadas à
propriedade industrial aos países em desenvolvimento, com o propósi-
to de acelerar o crescimento econômico e o desenvolvimento social
e cultural” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA PROPPRIEDADE INTE-
LECTUAL, 1974. s.p, tradução nossa)
17
.
Entretanto, quando analisamos a atuação da OMPI, pode-se perce-
ber um direcionamento, um enviesamento, do entendimento da organi-
zação sobre o papel dos direitos de PI no desenvolvimento econômico, es-
pecialmente dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, em
um sentido diferente daquele estabelecido no acordo de cooperação com
16. Como uma instituição membro da
ONU seria incumbência da OMPI se
guiar plenamente pelos amplos objeti-
vos de desenvolvimento estabelecidos
pela organização, especialmente suas
macro agendas de desenvolvimento
global, como os Objetivos de Desenvol-
vimento do Milênio e, contemporanea-
mente, os Objetivos de Desenvolvimen-
to Sustentável.
17. The United Nations recognizes the
World Intellectual Property Organization
(hereinafter called the “ Organization
“) as a specialized agency and as being
responsible for taking appropriate action
in accordance with its basic instrument,
treaties and agreements administered
by it, inter alia, for promoting creative
intellectual activity and for facilitating
the transfer of technology related to
industrial property to the developing
countries in order to accelerate econo-
mic, social and cultural development
(WORLD INTELLECTUAL PROPERTY
ORGANIZATION, 1974).
22
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 8, n. 1, (abr. 2020), p. 7 - 26
a ONU. Em termos concretos, a OMPI vem atuando, em suas diversas
frentes de ação, no sentido de resguardar o direito de PI como um direito
a ser garantido, per s e não como um instrumento normativo voltado a
estimular a inovação tecnogica e o desenvolvimento, e transferência e
acesso a tecnologia como forma de estimular o desenvolvimento na peri-
feria, como explicitado no documento supramencionado.
Essa interpretação típica e enviesada da OMPI sobre o papel dos
direitos de PI e o funcionamento dos sistemas de proteção se manifesta
em três pontos a serem destacados: a) na forma como a Organização
direciona sua expertise técnica, por meio das atividades de assistência
técnica; b) na forma como ela dene sua constituency, privilegiando o
setor empresarial “utilizador” do sistema de proteção; c) na forma de
condução das negociações e proposições de conteúdo para os tratados
negociados. Analisaremos esses três elementos individualmente, para
na sequência destacar uma das razões que explicariam essa perspectiva
especíca da organização.
A OMPI se especializou nas últimas décadas à prestação de assis-
tência técnica aos países na reforma e atualização de seus sistemas nacio-
nais de proteção, constituindo-se como um importante instrumento de
socialização da posição teórico-normativa da organização sobre o papel
da PI. O processo de adequação das normas e instituições nacionais aos
parâmetros negociados internacionalmente não é automático ou despro-
vido de nuances e disputas políticas. O TRIPS, ao estabelecer um padrão
mínimo obrigatório de proteção, limitou severamente as liberdades dos
países para denir seus sistemas nacionais de proteção. Entretanto, al-
gumas exibilidades foram mantidas para que os sistemas nacionais pu-
dessem prever regras e instituições nacionais que reetissem demandas
nacionais especícas e respondessem a problemas e particularidades dos
países. Entretanto, a OMPI teria assumido uma postura excessivamente
privatista na sua assistência, buscando aproximar os sistemas de prote-
ção de países em desenvolvimento e menos desenvolvidos aos padrões
adotados por países desenvolvidos – ou seja, limitando a introdução de
normas que garantissem o exercício concreto das exibilidades existentes
no TRIPS (DEERE, 2009; DEERE, 2014).
Outra questão impactante da forma como a OMPI manifesta suas
concepções sobre a PI se dá na relação que estabelece com os diferentes
atores interessados na estruturação do regime internacional de PI. Os
mencionados Policy Advisory Commission (PAC) e Industry Advisory Com-
mission (IAC) se consolidaram como os canais formais de interlocução da
organização com a “sociedade civil, estabelecendo uma larga margem
de poder à indústria nos processos negociadores. E como expõem Correa
e Musungu (2002) essas comissões:
foram criadas para garantir que a voz do mercado fosse ouvida e que a organi-
zação respondesse às suas necessidades. Embora o papel do IAC seja puramente
consultivo, o Diretor Geral indicou, quando da sua criação, que ele fosse proje-
tado para garantir que houvesse uma ‘entrada direta da indústria no processo
de decisão política da OMPI’. Esta declaração reete a visão de que a OMPI tem
apenas duas constituencies – os Estados-Membros, por um lado, e o mercado, por
outro lado. O público em geral, consumidores e outros não são considerados
como constituencies da organização (CORREA; MUSUNGU, 2002, p. 08).
23
Henrique Zeferino de Menezes e Daniela de Santana Falcão Poder e autonomia das organizações internacionais:
a OMPI na governança dos direitos de propriedade intelectual
Essas duas comissões, que teriam a função de aconselhar a organi-
zação e propor novos acordos, foram responsáveis, por exemplo, pela pre-
paração do relatório ‘Suestions for the Further Development of International
Patent Law’, apresentado na 4ª sessão do SCP em 2000
18
. Esse documento
foi, naquele momento, a base argumentativa e de sustentação da também
mencionadaAgenda de Patentes”.
O conteúdo das negociações de novos tratados é também uma
forma de expressar a complexa relação da organização com o setor
privado e sua contradição com relação ao mandato estabelecido por
meio do convênio com a ONU. As propostas apresentadas pelos órgãos
técnicos da organização, ou aqueles encampados por ela, buscavam,
em linhas gerais, a ampliação e o fortalecimento dos direitos de PI,
o que produz desequilíbrios entre proteção e acesso a conhecimento.
Poucos foram as propostas negociadas (e aprovadas) voltadas a garantir
exibilidades a direitos e construir mecanismos que garantam acesso a
conhecimento – elementos fundamentais na conformação de sistemas
nacionais de proteção ajustados e efetivamente voltados a estimular
a inovação, especialmente em países não desenvolvidos (SHADLEN,
2005). Ou seja, os acordos assumem, nas suas linhas, uma interpreta-
ção similar aquela propagada por meio da assistência técnica, i.e. os
direitos de PI como um direito privado normal a ser protegido e não
um instrumento voltado ao desenvolvimento econômico e o bem estar
das populações.
As discussões acerca das particularidades de sistemas nacionais de
inovação e sua relação com a capacidade técnica dos países, além dos efei-
tos que esses produzem sobre políticas sociais essenciais, é grande e não é
objeto desse texto. Entretanto, vale a pena apenas enfatizar que sistemas
de proteção a PI não são instituições de tipo one-size-ts-all e a OMPI, por
meio de sua assistência técnica e da proposição de acordos de PI de tipo
TRIPS-plus, tem contribuído para a harmonização internacional dos pa-
drões de proteção, rompendo com liberdades importantes que os países
possuem na denição de suas regras nacionais. Esse padrão de atuação
foge dos princípios constitutivos do acordo da OMPI com a ONU, uma
vez que não responde às demandas dos países em desenvolvimento e me-
nos desenvolvidos por acesso a conhecimento, transferência de tecnolo-
gia e construção de sistemas de proteção responsivos às suas especicida-
des técnicas e demandas sociais.
Uma das razões fundamentais a explicar a forma de atuação da
organização e sua relação estreita com a iniciativa privada estaria no
seu sistema particular de nanciamento. Como mencionado, aproxima-
damente 95% dos recursos da organização provem da utilização do seu
sistema de concessão global de direitos de PI – e a imensa maioria desse
valor deriva especicamente da utilização do PCT. O gráco abaixo, ex-
traído do Patent Cooperation Treaty Yearly Review de 2018 dá dimensão da
importância de determinados países para a determinação do orçamento
da organização
18. Ver o documento WIPO/SCP/4/2.
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Gráfico 3: Origem dos pedidos de patentes via PCT
Fonte: ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA PROPPRIEDADE INTELECTUAL, 2018, p. 24.
Com a exceção da China, que recentemente ascendeu ao papel de
grande patenteadora global, os principais utilizadores do sistema PCT
são países demandantes de regras TRIPS-plus, com uma agenda norma-
tiva internacional extremamente assertiva e forte na busca de acordos
preferenciais e multilaterais que garanta a proteção dos ativos de suas
empresas e cidadãos. Esse cenário criaria uma espécie de colaboração tá-
cita entre OMPI e os usuários de seus sistemas de proteção à PI, especial-
mente o PCT, em que a gradativa difusão de sistemas de proteção mais
atrativos às demandas de mercado desses países corresponderia também
aos interesses políticos da burocracia da organização.
Um último elemento a ser considerado, por mais que pareça contradi-
tório, permite avançar na argumentação sobre o distanciamento funcional
da organização do seu mandato. A Agenda do Desenvolvimento, lançada
em 2004 tinha como uma das suas demandas a “refundação” da OMPI, ar-
gumentado a necessidade dela retomar os elementos fundamentais do seu
próprio mandato. Ou seja, superar sua posição majoritariamente privatista,
direcionando suas ações – de assistência técnica e normativa – a demandas
que extrapolassem os interesses exclusivos de rmas patenteadoras e dos
países desenvolvidos e que realizasse efetivamente suas funções de desen-
volvimento, como agência especializada da ONU (MAY, 2007; MUSUNGU,
2005). O trecho abaixo, extraído do documento de lançamento da proposta
da Agenda do Desenvolvimento, demonstra esse ponto de forma clara:
Como uma agência especializada das Nações Unidas, a OMPI deve ser orientada
em todas as suas atividades pelos compromissos mais amplos relacionados ao
desenvolvimento e com as resoluções do sistema das Nações Unidas. A propriedade
intelectual não é um m em si mesmo. E certamente não deve ser vista como tal
em uma instituição como a OMPI, um membro da família das Nações Unidas. Se o
desenvolvimento é uma preocupação e um objetivo do sistema das Nações Unidas,
então, ela deve garantir que o sistema de propriedade intelectual, de que a OMPI é
uma parte central, efetivamente opere de forma a apoiar esse objetivo. A integração
da dimensão ‘desenvolvimento’ em todas as atividades da OMPI é, portanto, essên-
cia (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA PROPPRIEDADE INTELECTUAL, 2004).
No mesmo documento estão elencados pontos fundamentais que cor-
roboram o argumento. Em termos gerais, a OMPI deveria considerar os cus-
tos sociais da proteção à PI, além de tornar-se uma organização genuinamente
member-driven e não reexo dos interesses dos usuários do sistema de proteção.
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Henrique Zeferino de Menezes e Daniela de Santana Falcão Poder e autonomia das organizações internacionais:
a OMPI na governança dos direitos de propriedade intelectual
Considerações Finais
Nesse artigo procuramos analisar o papel da OMPI, destacando as
particularidades da organização no regime internacional de PI. O objeti-
vo foi discutir como essas particularidades conferiam poder e autonomia
à organização, além de produzir um nível de disfuncionalidade. No caso
especíco da alise, disfuncionalidade signicaria atuar em sentido con-
traditório aquilo que seria esperado da organização, ou seja, em dissonân-
cia com seu mandato. Concretamente, a OMPI tem atuado nas últimas
décadas amparada pela perspectiva estratégica de fortalecimento global
dos direitos de PI, desconsiderando elementos centrais da sua função – o
estímulo à inovação tecnológica e a garantia de mecanismos voltados ao
acesso a conhecimento e transferência de tecnologia – como explicitado
no seu acordo de colaboração com a ONU.
A relação com o setor privado, por meio das instituições de assesso-
ramento, mas especialmente pelo seu particular mecanismo de nancia-
mento, em uma estrutura de governança marcada pela centralização de
poder na Secretaria Executiva, dotada de uma forte autoridade burocrá-
tica, produziu uma dimica especíca na OMPI, tornando-a potencial-
mente autônoma em relação a sua constituency.
Nesse sentido, a capacidade técnica da OMPI, sua autonomia peran-
te os Estados, mas sua proximidade com grandes empresas privadas que
utilizam do sistema de proteção, afetaram a própria caracterização de PI
e sua funcionalidade como ferramenta voltada à inovação e desenvolvi-
mento. A OMPI tem uma importante capacidade de intervenção sobre
os rumos dos processos normativos internacionais e nacionais (por meio
da assistência técnica prestada, da condução das negociações de acordos
multilaterais etc.) e sua baixa responsividade em relação aos Estados-
-membros produziu disputas políticas importantes.
Por outro lado, pode-se dizer que a organização, mesmo se tor-
nando autônoma em relação à sua base elementar, os Estados-membros,
vem se colocando cada vez mais subordinada aos seus nanciadores. E
aquilo que poderia ser lido como uma forma de disfuncionalidade, na
realidade, seria a conformação de uma nova funcionalidade para a or-
ganização, que dependente dos interesses das empresas que sustentam
e mantém a sua própria burocracia, passa de uma organização pautada
pelos interesses de desenvolvimento dos países para uma agência de
reconhecimento e proteção da propriedade privada e do direito de mo-
nopólio de grandes corporações.
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Agradecimentos:
Gostaríamos de agradecer aos comentários e críticas dos professores do Departamento de Rela-
ções Internacionais da UFPB Daniel de Campos Antiquera, Thiago Lima e Xaman Korai Pinhei-
ro Minillo. Agradecemos ainda o nanciamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientíco e Tecnológico (CNPq), por meio da sua Chamada Universal.